Durante séculos, países europeus acumularam objetos raros de todo o mundo. Retirados de seus locais de origem na África, Ásia ou América, itens arqueológicos ou históricos estão expostos até hoje em museus do Velho Continente, um legado controverso dos tempos do imperialismo europeu. Neste ano, o Brasil deverá colocar um ponto final em uma história semelhante, mas cujo roteiro teve início já no século XXI: desde 2004, mais de 600 itens indígenas estão de forma irregular, segundo autoridades brasileiras, na França.
As peças, muitas delas raras e únicas, deverão voltar ao país após terem permanecido 15 anos no Museu de História Natural de Lille. O conjunto foi inicialmente emprestado pela Funai, mas deveria ter retornado em 2009, de acordo com o lado brasileiro. A demora deu início a uma disputa de mais de uma década — a batalha só foi vencida graças à insistência de técnicos do Museu do Índio, além da intervenção do Ministério Público Federal (MPF) e do Itamaraty.— É um acervo único. São 611 objetos, de 39 povos, a maioria do Brasil Central. Pela data de produção, há indícios de que eles não sejam mais fabricados por estes povos. É um patrimônio cultural do Brasil — afirma o coordenador de Patrimônio Cultural do Museu do Índio, Bruno Oliveira Aroni.
Na lista, estão objetos como troncos de madeira usados pelos Kamaiurá, do Xingu, durante o Kuarup, ritual de despedida dos mortos. Leques de occipício, adornos de cabeça usados pelos Karajá durante a “Festa da Casa Grande” , que marca a passagem da infância para a vida adulta, também fazem parte da coleção cobiçada pelos franceses. Entre tantas peças, outro item que chama a atenção é a Máscara Cara-Grande dos Tapirapé, usada no ritual mais tradicional do grupo por homens adultos. Ela é destruída no dia seguinte, pois o povo acredita que os espíritos ficam nas máscaras.
A coleção tem valor inestimável por guardar parte da memória de povos brasileiros originários, hoje no centro do debate sobre preservação ambiental e enfrentamento das mudanças climáticas.
O processo de recuperação desse conjunto, ao qual o GLOBO teve acesso, é marcado pela protelação dos franceses, de um lado, e por um trabalho de vários anos por parte de servidores do museu e da Funai para que as peças retornassem ao Brasil. O trâmite deve ser finalizado este ano: no último mês, o museu brasileiro contratou uma empresa para fazer o transporte.
Por pelo menos nove anos, os franceses discordaram ou impuseram dificuldades à devolução. Ao contrário do que previa o contrato, segundo o MPF, o dinheiro do transporte sairá dos cofres do Brasil, já que os europeus se recusaram a pagar. Esse, contudo, foi o único meio de pôr fim à discórdia.
A história começou em 2003, ironicamente em meio às preparações para a comemoração do centenário das relações entre Brasil e França. A princípio, o museu francês queria comprar o acervo que pertencia a uma empresa sediada em São Paulo. No entanto, a saída dos objetos para a França não foi liberada pela Funai, já que a legislação impede que peças com partes de animais silvestres, presentes em muitos adornos, sejam levadas do país. A solução foi a aquisição, pelo Museu de Lille, e a imediata doação ao Museu do Índio. Em troca, a instituição brasileira autorizaria o empréstimo por cinco anos, renováveis por outros cinco.
De 2004 a 2009, o Museu de Lille expôs os bens, mas não enviou nenhum comunicado ao Museu do Índio com interesse na renovação. Com isso, a partir de 2010, começaram as trocas de ofício com pedidos de devolução. Na época, o então diretor do Museu do Índio começou o plano de retorno, mas o Museu de Lille protelava. “Acreditamos que essa coleção faz parte do patrimônio da cidade de Lille. A finalidade é valorizar a cultura brasileira junto ao público de Lille e ao público francês em geral, respeitando a integridade do patrimônio brasileiro cultural e natural”, responderam os franceses em 2011.
Em 2013, frente aos problemas, a Funai admitiu renovar o empréstimo por três anos, mas os franceses responderam que só poderiam assinar o contrato no ano seguinte, o que não ocorreu. Em 2016, quando a tentativa de reaver o acervo já tinha seis anos, uma servidora do órgão registrou o problema em documento. “Depreende-se uma negativa velada ao retorno das peças etnográficas, uma vez que, em todos os momentos, observa-se que o Museu de Lille não se manifesta acerca da finalização do empréstimo”, pontuou.
Em 2015, o MPF entrou no caso. Segundo o procurador Sergio Suiama, não há dúvidas de que os itens ficaram de forma irregular na França durante este período. O GLOBO procurou o Museu de Lille, mas não obteve retorno.
— O que é mais triste é que esse material não está nem exposto. Nesse tipo de caso, é comum que os países europeus aleguem que os países de origem não teriam como cuidar, que o patrimônio poderia ser destruído. Mas isso é uma falácia. Temos que lutar para que fiquem bem armazenados aqui. E está tudo certo com a reforma no Museu do Índio — afirmou Suiama.
A pressão do MPF se juntou à do Itamaraty, que começou o processo de convencimento. Em 2017, os franceses responderam que estavam à disposição para devolver os objetos, “com as despesas a cargo das autoridades brasileiras”.
Em 2019, o lado brasileiro decidiu ceder e arcar com os custos de pouco mais de R$ 1 milhão, além das necessárias reformas realizadas no Museu do Índio, em Botafogo, no Rio de Janeiro, para receber o acervo. Em meio a dificuldades orçamentárias, o museu investiu em reservas técnicas climatizadas e adaptou uma de suas salas. O espaço, que está fechado desde 2016, deve reabrir para visitação de forma gradual no segundo semestre deste ano.